É chover no molhado dizer que a série de The Last of Us não tem medo de alterar o cânone dos jogos de Neil Druckmann. Na primeira temporada, a prioridade do desenvolvedor e do showrunner Craig Mazin sempre foi contar uma história que se encaixasse no formato episódio de uma série de TV sem medo de abrir mão de alguns dos elementos que fizeram do game original um sucesso mundial. Com isso, a ação do gameplay deu espaço ao drama: personagens secundários ganharam mais destaque, arcos paralelos receberam injeções de contextos e subtextos, e o resultado foi uma adaptação aclamada que conseguiu sobreviver com seus próprios pés, ancorados ainda por uma atuação sublime da dupla de protagonistas Pedro Pascal e Bella Ramsey. No segundo ano, a dupla dobrou a aposta, mas precisou encontrar uma nova essência ao se distanciar demais do original.
Não era por acaso que as expectativas em torno da segunda temporada estavam altíssimas. The Last of Us: Parte 2 foi um marco na história dos games, e uma legião de fãs fazia apostas sobre como certos acontecimentos icônicos seriam adaptados, onde o novo ano iria parar e como as diferentes perspectivas de Ellie e Abby, principal elemento do jogo, seriam trabalhadas. Essa última foi revelada na cena inicial, com o público descobrindo logo de cara as motivações de Abby para ir à caça de Joel, e foi justamente esta decisão que ditou os rumos do novo ano.
Pode-se afirmar que tal escolha deixou Mazin e Druckmann “reféns” da procura por uma nova essência na história de The Last of Us. Se o jogo tinha na dualidade entre Ellie e Abby e as consequências de suas ações o seu principal trunfo - o custo da sobrevivência, a imoralidade em um mundo destruído, a busca por justificar o injustificável -, a série precisou encontrar novas formas de estudar a ligação entre as duas. Sem a possibilidade do plot twist das razões de Abby, parece que a opção encontrada pela dupla foi estruturar um antagonismo claro: Ellie se tornou a heroína injustiçada, enquanto Abby virou a personificação da vilã clássica.
Como consequência destas mudanças, a jornada de vingança de Ellie foi totalmente atenuada. A ação que foi diminuída no primeiro ano se tornou quase inexistente na segunda temporada, com as exceções sendo apenas algumas (boas) sequências envolvendo ataques de hordas de infectados. A brutalidade das ações da protagonista, que engloba grande parte da ação do gameplay do jogo, foi totalmente excluída para que Ellie fosse humanizada. Mesmo quando obrigada a cometer atos hediondos, ela nunca deixou de questionar suas ações, mesmo que a raiva pela morte de Joel ainda a estivesse consumindo.
Há quem torça o nariz para essa troca de essência, e de fato nem todas essas mudanças tiveram efeitos positivos - Jesse (Young Mazino) e Tommy (Gabriel Luna), personagens centrais dos jogos, ficaram escanteados até o final. Mas não dá pra negar que, mesmo sem a dualidade entre suas protagonistas, a série de The Last of Us ainda é sublime em nos fazer sentir todas as emoções que o jogo nos proporcionou. Parte disso se deve, mais uma vez, ao trabalho de seu elenco. Bella Ramsey transita entre a raiva e o luto com uma suavidade hipnotizante, enquanto Isabela Merced deu a Dina a substância necessária para que fosse praticamente uma protagonista, e nunca uma secundária.
Com o fim desta temporada, parece óbvio que Mazin e Druckmann abriram mão da crueldade deste mundo pós-apocalíptico para dar lugar à inocência de uma jovem perdida no luto, cuja única bússola é o ódio pelo que foi tirado dela - mas sem se esquecer do que a torna humana. A Ellie de Bella Ramsey pode não ser a femme fatale que aprendemos a amar (e odiar) nos jogos, mas ela ainda nos ensina que, mesmo nos piores momentos, agir pela raiva só nos aproxima da escuridão.
The Last of Us
Criado por: Neil Druckmann e Craig Mazin
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